A Dor é uma das coisas mais potentes que eu já li e é este livro que me faz dizer, se é possível dizer algo assim, que Marguerite Duras é a minha autora.
Quando vi que tinha o filme, fiquei pensando: é possível filmar uma espera? Como fazer “ver” um dor tão indefinível? Como não tornar superficial tal dilaceramento? O filme, se não pode alcançar todas as ambiguidades, sombras, hemorragias e devastação das palavras de MD, consegue construir imagens e interações suficientemente angustiantes e concomitantemente belas. É um filme que se arrasta – e isso é um elogio. O fundo desfocado de tantas cenas nos coloca no cotidiano em que a vida “de verdade” é irrelevante e quase intangível. É a espera que importa, que impede o sono, que invade os pensamentos, que ocupa o corpo de tal forma que não permite nem mesmo que se coma – dois elementos não ocupam o mesmo lugar no espaço. A espera transfigura a existência e, quando assim acontece, já não se pode ser, apenas a Dor é.
O filme consegue traduzir a tensão dos encontros com Rabier, o desconforto nos encontros com a Resistência, a ambiguidade da relação com Dienys, a perturbação no corpo decorrente de uma situação quase impossível de suportar. A atuação de Melanie Thierry é irrepreensível, o roteiro é corajoso e a direção é muito inteligente (não gosto de alguns cortes, mas, né, quem sou eu no jogo do bicho). Gosto, especialmente, do recurso da narradora por vezes duplicar-se, ela é quem sente, mas é também ela que narra e por mais que não se “falseie” a realidade, a escrita é ficção e, por conseguinte, um tipo de distância.
A solidão é uma constante e a personagem tenta driblá-la com raciocínios compulsivos que, em vão, ela busca fazer ocupar o lugar da ausência. A impossibilidade de se visualizar e representar o horror é muito eticamente tratado pelo diretor, um dos filmes mais sensíveis e capazes de fazer sentir não usando mão de imagens fáceis ou recursos semelhantes que banalizam o indizível. O filme não alivia, não negocia com o espectador, ele segue, devastador, absurdo, angustiante e isso é exatamente o que ele deveria ser.
O filme não nos provoca uma catarse fácil, não nos empurra para a identificação superficial ou pra o sentimentalismo forte e e superável, não, ele vai cavando fundo, encontrando o que não sabemos viver, martelando, repetindo, batendo forte onde ressoa mais com aquele eco que altera a composição mesma das coisas e do ser e quando (ou se) o choro vem, não é alívio o que nos ocorre depois, mas ansiedade porque ainda há tanto o que se doer, digo, viver.
Ps1. Amo filme francês que tá todo mundo todo tempo fumando.
Ps2. Filme “Memórias da Dor” (original La Douleur).
Ps3. Acho o título dado no Brasil um pouquinhoequivocado, essa não é uma dor que se pode evocar como memória, lembrança, ela conforma, habita, existe. É.